terça-feira, 6 de novembro de 2007

Carta de Clarisse



"Não pense que a pessoa tem tanta força assim
a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma.
Até cortar os defeitos pode ser perigoso
- nunca se sabe qual o defeito que sustenta
nosso edifício inteiro.
Há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo.
Quase quatro anos me transformaram muito.
Do momento em que me resignei,
perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas.
Você já viu como um touro castrado
se transforma em boi.
Assim fiquei eu...
Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas
repulsas e meus sonhos,
tive que cortar meus grilhões -
cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim.
E com isso cortei também a minha força.
Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você
- respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você
- não copie uma pessoa ideal,
copie você mesma -
é esse seu único meio de viver.
Juro por Deus que, se houvesse um céu,
uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida
e iria para um inferno qualquer.
Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão.
Pegue para você o que lhe pertence,
e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige.
Parece uma vida amoral.
Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma.
Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber.
Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma".

Trecho publicado pelo fantástico,
pelo escritor Caio F. Abreu.
É, talvez, uma carta de Clarice Lispector escrita a uma amiga brasileira.
Um desabafo que segundo Caio, é tão Clarice que não tem como ser de outra pessoa.
1947- Berna - Suiça
.

Nenhum comentário: