domingo, 30 de novembro de 2008

É Hora de Recomeçar

De um dos moradores do Vale do Itajaí, que sofreu a pior enchente em toda a sua história, e com certeza também a pior enchente da história do Brasil!

O sol saiu e conseguimos voltar a trabalhar. A despeito de brincadeiras e comentários espirituosos normais sobre esta “folga forçada” a verdade é que nunca me senti tão feliz de voltar ao trabalho. Não somente pelo trabalho, pela instituição e pela própria tranqüilidade de ter aonde ganhar o pão, mas também por ser um sinal de que a vida está voltando ao normal aqui no nosso vale do Itajaí e toda a nossa região : Brusque, Blumenau, Balneário, Gaspar, etc...

As fotos que circulam na internet e os telejornais já nos dão as imagens claras de tudo que aconteceu então não vou me estender narrando e descrevendo as cenas vistas nestes dias. Todos vocês já sabem de cor. Eu quero mesmo é falar sobre lições aprendidas.

Por mais que teorias e leituras mil nos falem sobre isso ainda é surpreendente presenciar como uma tragédia desse porte pode fazer aflorar no ser humano os sentimentos mais nobres e os seus instintos mais primitivos. As cenas e situações vividas neste final de semana prolongado em todo o vale do Itajaí, nos fizeram chorar de alegria, raiva, tristeza e impotência. Fizeram-nos perder a fé no ser humano num segundo, para recuperar-la no seguinte. Fez-nos ver que sempre alguém se aproveitará da desgraça alheia, mas que também é mais fácil começar de novo quando todos se dão as mãos.

Que aquela entidade superior que cada um acredita (Deus, Jeová, Jesus, Alá, Buda, etc.) e da forma que cada um a concebe tenha piedade daqueles:

- Que se aproveitaram a situação para fazer saques em Supermercados, levando principalmente bebidas (uísque principalmente) e cigarros

- Que saquearam uma farmácia levando medicamentos controlados, equipamentos e cofres e destruindo os produtos de primeira necessidade que ficaram assim como a estrutura física da mesma.

- Que pediram 3 reais por um humilde pãozinho num moemento em que não se tinha nada para comer

- Que pediam 5 reais por um litro de água mineral.

- Que chegaram a pedir 150 reais por um botijão de gás.

- Que cobraram 5 reais o litro da gasolina para pessoas que usavam seus carros para socorrer outros em pior situação

- Que foram pedir donativos de água e alimentos nas áreas secas pra vender nas áreas alagadas.

- Que foram comer e pegar roupas nos centros de triagem mesmo não tendo suas casas atingidas.

- Que esperaram as pessoas saírem das suas casas para roubarem o que restava.

- Que fizeram pessoas dormir em telhados e lajes com frio e fome para não ter suas casas saqueadas ou "muito cheias de gente"....

- Que não sentiram preocupação por ninguém, e, com certeza, algo está errado em seu coração.

- Que simplesmente fizeram de conta que nada acontecia, por estarem em áreas secas.

Da mesma forma, que essa mesma entidade superior abençoe:

- Aqueles que atenderam ao chamado das rádios e se apresentaram no domingo no quartel dos bombeiros para ajudar de qualquer forma.

- Os bombeiros que tiveram paciência com a gente no quartel para nos instruir e nos orientar nas atividades que devíamos desenvolver.

- A turma das lanchas, os donos das lanchinhas de pescarias de fim de semana que rapidamente trouxeram seus barquinhos nas suas carretas e fizeram tanta diferença.

- À equipe da lancha, gente sensacional que parecia que nos conhecíamos de toda uma vida.

- Aos soldados do exército do Paraná e do Rio Grande do Sul.

- Aos bravos gaúchos, tantas vezes vitimas de nossas brincadeiras que trouxeram caminhões e caminhões de mantimentos.

- Aos cadetes da Academia da Polícia Militar que ainda em formação se portaram com veteranos.

- Aos Bombeiros e Policias locais que resgataram, cuidaram , orientaram e auxiliaram de todas as formas, muitas vezes com as suas próprias casas embaixo das águas.

- Aos Médicos Voluntários.

- Às enfermeiras Voluntárias.

- Aos bombeiros do Paraná que trabalharam ombro a ombro com os nossos.

- Aos Helicópteros da Aeronáutica e Exercito que fizeram os resgates nos locais de difícil acesso.

- Aos incansáveis do SAMU e das ambulâncias em geral, que não tiveram tempo nem pra respirar.

- Ao pessoal do Helicóptero da Polícia Militar de São Paulo, que mostrou que longo é o braço da solidariedade.

- Ao pessoal das rádios que manteve a população informada e manteve a esperança de quem estava isolado em casa.

- Aos estudantes que emprestaram seus físicos para carregar e descarregar caminhões nos centros de triagem.

- Às pessoas que cozinharam para milhares de estranhos.

- Ao empresário que não se identificou e entregou mais de mil marmitex no centro de triagem.

- A todos que doaram nem que seja uma peça de roupa.

- A todos que serviram nem que seja um copo de água a quem precisou.

- A todos que oraram por todos.

- Ao Brasil todo, que chorou nossos mortos e nossas perdas.

- Aos novos amigos que fiz no centro de triagem, na segunda-feira.

- A todos aqueles que me ligaram preocupados com a gente.

- A todos aqueles que ainda se preocupam por alguém.

- A todos aqueles que fizeram algo, mas eu não soube ou esqueci.

- Aos vários caminhoneiros e algumas transportadoras que cederam e ainda cedem espaços nos caminhões para transportar água, comida e roupa para tanta gente que perdeu tudo que tinha....

É hora de recomeçar, e talvez seja hora de recomeçar não só materialmente. Talvez seja uma boa oportunidade de renascer, de se reinventar e de crescer como ser humano.Pelo menos é a minha hora, acredito.

Que Deus abençoe a todos.


sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Tragédia sem Anúncio


O Bordado
Quando eu era pequeno, minha mãe costurava muito. Eu me sentava no chão, brincando perto dela, e sempre lhe perguntava o que estava fazendo.
Respondia que estava bordando.
Todo dia era a mesma pergunta e a mesma resposta. Observava seu trabalho de uma posição abaixo de onde ela se encontrava sentada e repetia:
- Mãe, o que a senhora está fazendo?
Dizia-lhe que, de onde eu olhava, o que ela fazia me parecia muito estranho e confuso. Era um amontoado de nós, e fios de cores diferentes, compridos, curtos, uns grossos e outros finos. Eu não entendia nada. Ela sorria, olhava para baixo e gentilmente me explicava:
- Filho, saia um pouco para brincar e quando terminar meu trabalho eu chamo você e o coloco sentado em meu colo. Deixarei que veja o trabalho da minha posição.
Mas eu continuava a me perguntar lá de baixo:
- Por que ela usava alguns fios de cores escuras e outros claros?
- Por que me pareciam tão desordenados e embaraçados?
- Por que estavam cheios de pontas e nós?
- Por que não tinham ainda uma forma definida?
- Por que demorava tanto para fazer aquilo?
Um dia, quando eu estava brincando no quintal, ela me chamou:
- Filho, venha aqui e sente em meu colo.
Eu sentei no colo dela e me surpreendi ao ver o bordado. Não podia crer! Lá de baixo parecia tão confuso! E de cima vi uma paisagem maravilhosa!
Então minha mãe me disse:
- Filho, de baixo parecia confuso e desordenado porque você não via que, na parte de cima, havia um belo desenho. Mas, agora, olhando o bordado da minha posição, você sabe o que eu estava fazendo.
Muitas vezes, ao longo dos anos, tenho olhado para o céu e dito:
- Pai, o que estás fazendo?
Ele parece responder:
- Estou bordando a sua vida, filho.
E eu continuo perguntando:
- Mas está tudo tão confuso... Pai, tudo em desordem. Há muitos nós, fatos ruins que não terminam, e coisas boas que passam rápido.
O Pai parece me dizer:
'Meu filho, ocupe-se com seu trabalho, descontraia-se, confie em Mim e... eu farei o meutrabalho. Um dia, colocarei você em meu colo e então vai ver o plano da sua vida da minha posição.'
Muitas vezes não entendemos o que está acontecendo em nossas vidas. As coisas são confusas, não se encaixam e parece que nada dá certo.
É que estamos vendo o avesso da vida!
Do outro lado, Deus está bordando...

O autor, Prof. Damásio de Jesus, um dos maiores tratadistas do Direito Penal Brasileiro, com incontáveis publicações na área Processual, escreveu esse texto em novembro de 2002.

Nossa solidariedade às vítimas das chuvas de Santa Catarina e Rio de Janeiro, e com esperança lembramos que, "do outro lado, Deus está bordando!"

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Natal


O Natal Se Aproxima



O Natal se aproxima. As luzes da cidade e do mundo já brilham mais em suas mais diversas cores. A alegria da festa natalina parece tomar forma em nossa forma de viver e ser. Tudo começa acontecer, como se o natal fosse realmente um espírito capaz de interagir no mundo dos mortais.

O comércio se anima e prepara suas ofertas tentando com elas chamar consumidores, as grandes lojas se enfeitam com guirlandas, luzes, cores e músicas. Até Papai Noel se multiplica nas portas das lojas com seus sinos e balas chamando clientes que desejam gastar, afinal a época é pra isso mesmo, gastar! Trocam-se os móveis, reformam-se as casas, compram-se carros novos e presentes, enfim, tudo novo para o tempo onde o novo é esperado, e ansiosamente, desejosamente esperado.

As lágrimas secam das faces que tanto choraram durante todo ano. Parece que nessa época, nesse espírito natalino, os olhos sorriem e se alegram todas as alegrias e esperanças que não tiveram durante o ano todo.

E o natal se aproxima. As festas são planejadas em cada família, mesmo as que brigaram o ano todo. Até mesmo essas se sentam em torno da mesa para combinar os preparativos da união de uma noite. Uma noite apenas e tanta transformação. Até mesmo os que não têm fé ou os pertencentes a outras crenças que não o cristianismo parecem se envolver nesse tal espírito natalino.

Fico aqui pensando quem é de fato esse tal espírito, capaz de tanta mudança nas vidas de todos? Mesmo os solitários se colocam como acompanhados por uma força que não se sabe o que é nem de onde vem...

E o natal se aproxima. Não importa se existe mesmo esse tal espírito ou o que move realmente um mundo inteiro para tamanha transformação. Importa que se perceba que é um tempo de reconciliação, onde o mundo se confraterniza, solidários uns com os outros sem se importar com raças ou credos. Tornamo-nos um só. Um mundo inteirinho unido formando um só coração. Sorrindo, alegrando-se, abraçando-se no mesmo desejo de paz...

E o natal se aproxima. Não deixemos para última hora os preparativos mais importantes dessa festa toda que tem por duração somente uma noite mas que carrega em si a capacidade de transformar o mundo inteiro. Comecemos nossos preparativos por nós mesmos, por nosso interior, colocando-nos em paz com todas as pessoas que nos cercam. Olhemos nos olhos uns dos outros e levemos amor. Tratemos de nossas vidas. Vamos fazer a "faxina" completa no nosso interior tirando toda teia do orgulho, lixo de ressentimentos, tudo o que possa nos atrapalhar quando na noite mágica do natal formos olhar nos olhos dos que estiverem conosco. Que levemos nessa noite de paz, somente amor, nada mais, e não vamos nos esquecer dos que têm menos que nós, dos que sofrem suas dores, sejam elas no corpo ou na alma.


Paz ao mundo!

Que seja esse nosso brinde nessa noite de amor onde a luz nasceu...

Que sejamos todos tomados pelo espírito do natal, não só numa noite, mas em todas as noites de nossas vidas.

Por Adriana Cristina Rampin (Aisha)

domingo, 23 de novembro de 2008

Uma Panela de Água e Sal


"Não acredito em grandes mudanças neste tempo de ideologias confusas e cabeças loucas, mas tenho esperança em algumas transformações individuais"

O habitual rio de desgraças nos chega pelos jornais e TVs: política e polícia, mediocridade geral e alienação particular, todo o drama humano – não insolúvel, mas nunca resolvido. A crise atual, que mal começa e vai piorar, tem de um lado o medo, de outro a arrogância, e produz férias forçadas ou desemprego. Tem gente que ainda diz que não há crise. Tem gente cortando despesas e tremendo nas bases do otimismo, por modesto que ele seja. Tem gente mandando a gente deixar de bobagem e consumir. Que fazer?

Os vinte grandes do mundo – em parte responsáveis pelo que nos atinge – almoçam em torno de uma mesa luxuosa num intervalo do seu jogo de vantagens, poder e enganos. Num país vizinho, uma mãe de 20 anos com cara de anciã e menos de 1,5 metro de altura, com um bando de filhos mirrados, segura um bebê, o único que vagamente sorri. Indagada sobre o que tem em casa para lhes dar de comer, a mãe responde olhando para o jornalista: "Hoje é uma panela com água e sal". Fala quase num tom de quem pede desculpas. A panela aparece, realmente fumega no fogãozinho de pedras dentro do casebre. Desligo o noticioso como se fosse um filme obsceno – é um filme obsceno. Mas ligo outra vez: é preciso saber. Notícias da pobreza brasileira: crianças comendo nos lixões, mais famílias meio anãs porque desnutridas, um menino esquelético de belíssimos olhos escuros cansado de carregar água ladeira acima – baldes de água leitosa tirada de uma poça barrenta.

Enquanto isso, trilhões em dinheiro circulam pelos mercados (Vou receber e-mails repetindo que empobrecer os ricos não ajuda aos pobres: nem todos entendem o que escrevo, mas botar a cara na janela é para isso também.). Não acredito em grandes mudanças neste tempo de ideologias confusas e cabeças loucas, em que a gente muda de partido ou de ideal como quem compra um celular novinho. Mas tenho esperança em algumas transformações individuais. Talvez esteja me tornando ferrenhamente individualista, não por egoísmo, mas por esperar que cada um tente fazer a sua pequena parte. Trabalho de formiguinha: se alguém pagar à empregada o melhor que pode pagar, em vez de lhe dar o mínimo que a lei exige alguma coisa já mudou. Se, em vez de querermos atordoadamente ter e aparecer, participar e pertencer e sobressair, pensarmos em alegria e afetos; se acreditarmos que o bom e o belo são possíveis, apesar de tudo; se conseguirmos ser um pouco menos cegos e arrogantes, quem sabe começaremos a cair na real e a ajeitar a ordem do mundo que anda tão torta.

Um pai de aluno, numa escola onde estive, estava preocupado com "o excesso de possibilidades que se oferecem a jovens e crianças", e com razão. Isso é tão preocupante quanto a vasta miséria. A desigualdade sempre vai existir, pois não somos bonecos feitos em série: haverá os menos talentosos, os mais inteligentes, os mais enérgicos e os menos capazes. Mas aquela mãe com seus filhos esqueléticos não precisavam existir. Agora, na televisão, três crianças, de 5, 7 e 8 anos, três lindas menininhas, enchem pequenos baldes com areia. Não é para brincar: elas estão, diz o irmão de uns 12 anos, "trabalhando". Ajudam a família carregando areia morro acima, a prefeitura do seu vilarejo paga por isso. Não é no Brasil, mas é perto, e, com certeza, por aqui temos esse tipo de crime. Essa gente não pensa em crise: do nascimento à morte, sua vida é uma escuridão de fundo de poço. Para eles, o que conta é a dor da barriga sem comida e a da alma sem esperança.

Desligo a TV e vou cuidar da vida. Carrego, mais do que o caos nas finanças do mundo, o palavrório dos vinte figurões e as dificuldades que se avolumam. Aquela mãe de metro e meio com seus sete filhos tristes. O pano de fundo é uma fumegante panela de água com sal, toda a sua refeição para esse dia.
Crônica de Lya Luft, publica na revista Veja, Edição 2088
Foto da NET

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Este Envelhecer


Envelhecer explodindo de vida, alimentando-se do prazer.
Envelhecer com os amigos, com os vizinhos, sem importar-se muito com o dogma e a sombra do preconceito.
Envelhecer na santa paz de Deus, com a genética que Ele nos deu, envelhecer com Fé.
Fé, paciência divina, que sustenta o espírito e faz da alma um menino travesso, sapeca e feliz...
Fé de um guerreiro e de um aprendiz.

Envelhecer com a saliva e o paladar presentes na boca, com as lágrimas banhando os olhos, com a pele bronzeada pelo sol e pela lua,
envelhecer com um sorriso largo no rosto afável,
envelhecer como o bem que se quis, enxergando-se à frente do nariz.
Envelhecer não é tão doloroso assim.
Para alguns é o fim do mundo, e eu me pergunto:
- O mundo tem fim?

Envelhecer é ganhar do tempo, o tempo exato e lapidado para saber aproveitar, compartilhar,
multiplicar todas as belezas e obras do sol nascente.
Por que a sua idade mente?
Envelhecer é fazer da abobrinha o prato do dia e do açúcar a festa de domingo.

Envelhecer é comer pela manhã,
exercitar o corpo à tarde e relaxar ao anoitecer.
É ir a praia, ao mercadinho, é ver novela, é ir ao cinema, ao shopping,
é estar perto do que temos direito,
é ser livre, é valorizar a pátria das células, o sangue
que transita nas veias, e controlar a oxidação dos tecidos.

Envelhecer é trazer no peito a medalha dos filhos, dos netos, dos bisnetos...
Envelhecer é ver a cegonha várias vezes por ano, milhares de vezes sobrevoando o céu.

Envelhecer é dar o colo confortável, o ombro, o abraço, o beijo apaixonado na face de um mimo querido.
Saber envelhecer é qualquer carinho!

O que são as doenças?
Elas dão na gente e não nas pedras, dizia a minha avó.
Nunca escolhe o dia mais certo ou o mais errado para chegar, e nem mesmo bate a nossa porta como uma convidada exemplar.
Doença é coisa de velho... você tem certeza do que fala ou pensa?
Cuidado com a sua crença.
O controle da mente, a vontade de existir, a mão firme mesmo que frágil, um dia menos triste, espanta qualquer vírus,
nos livra da maca, do convênio e da emergência.

Envelhecer é estar de bem com as árvores,
é ver o pássaro colorido,
é respeitar o tempo da felicidade,
é gostar-se como se gosta dos amigos.

Envelhecer é cantar, dançar, acreditar na sabedoria.
Envelhecer é algo que me anima, possui ritmo e melodia.
É experimentar prazeres e galgar descobertas.
Ah, este envelhecer transformou-se em arte, Van Gogh, Monet, Sinatra.
Envelhecer é dar bombom aos netos, é brindar a tecnologia.
Meu avô, minha avó...
Velhos amados, que eu pude ter.
Estar velho, antigo, idoso seja qual for o nome dado, importa muito pouco o rótulo.
Importa muito mais a garantia de vida.

Os hormônios, a atividade física, são recursos que podemos optar sem desmerecê-los.
O sexo está no desejo e devemos a ele saciar.
Amigos, aproveitem, envelheçamos sem preconceitos,
quero vê-los na casa dos 90 com os nossos 30, 40, 50, 60 e etc.
Quero estar onde vocês estiverem, com ou sem rugas, com ou sem cabelos brancos, mas repletos de paz e alegria!
A vida não se aprende nas cartilhas, ela está em nossas mãos!
Envelhecer exige acima de tudo perseverança e muita paixão.

Texto: Andrea Abdala
Imagem: NET

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Crônica da Loucura


O melhor da terapia é ficar observando os meus colegas loucos. Existem dois tipos de loucos. O louco propriamente dito e o que cuida do louco: o analista, o terapeuta, o psicólogo e o psiquiatra. Sim,somente um louco pode se dispor a ouvir a loucura de seis ou sete outros loucos todos os dias, meses, anos. Se não era louco, ficou.
Durante quarenta anos, passei longe deles.Pronto, acabei diante de um louco, contando as minhas loucuras acumuladas.Confesso, como louco confesso, que estou adorando estar louco semanal.O melhor da terapia é chegar antes, algumas minutos e ficar observandoos meus colegas loucos na sala de espera.
Onde faço a minha terapia é uma casa grande com oito loucos analistas.Portanto, a sala de espera sempre tem três ou quatro ali, ansiosos,pensando na loucura que vão dizer dali a pouco.
Ninguém olha para ninguém.O silencio é uma loucura.
E eu, como escritor, adoro observar pessoas, imaginar os nomes, a profissão, quantos filhos têm, se são rotarianos ou leoninos,corintianos ou palmeirenses .Acho que todo escritor gosta desse brinquedo, no mínimo, criativo.
E a sala de espera de um "consultório médico", como diz a atendente absolutamente normal (apenas uma pessoa normal lê tanto Paulo Coelho como ela), é um prato cheio para um louco escritor como eu.
Senão, vejamos:Na última quarta-feira, estávamos eu, um crioulinho muito bem vestido,um senhor de uns cinqüenta anos e uma velha gorda.Comecei, é claro, imediatamente a imaginar qual seria o problema de cada um deles? Não foi difícil, porque eu já partia do principio que todos eram loucos, como eu. Senão, não estariam ali, tão cabisbaixos e ensimesmados.
O pretinho, por exemplo.Claro que a cor, num pais racista como o nosso, deve ter contribuído muito para leva-lo até aquela poltrona de vime.Deve gostar de uma branca, e os pais dela não aprovam o casamento,pensei. Ou será que não conseguiu entrar como sócio do "Harmonia do Samba"? Notei que o tênis estava um pouco velho.Problema de ascensão social, com certeza.O olhar dele era triste, cansado.Comecei a ficar com pena dele.Depois notei que ele trazia uma mala.Podia ser o corpo da namorada esquartejada lá dentro.Talvez apenas a cabeça.Devia ser um assassino, ou suicida, no mínimo. Podia ter também uma arma lá dentro.Podia ser perigoso.Afastei-me um pouco dele no sofá.Ele dava olhadas furtivas para dentro da mala assassina.
E o senhor de terno preto, gravata, meias e sapatos também pretos?Como ele estava sofrendo, coitado.Ele disfarçava, mas notei que tinha um pequeno tique no olho esquerdo.Corno, na certa. E manso. Corno manso sempre tem tiques.Já notaram? Observo as mãos. Roía as unhas. Insegurança total, medo deviver.Filho drogado? Bem provável.Como era infeliz esse meu personagem.Uma hora tirou o lenço e eu já estava esperando as lágrimas quandoele assoou o nariz violentamente, interrompendo o Paulo Coelho da outra.Faltava um botão na camisa. Claro, abandonado pela esposa.Devia morar num flat, pagar caro, devia ter dívidas astronômicas.Homossexual? Acho que não. Ninguém beijaria um homem com um bigode daqueles. Tingido.
Mas a melhor, a mais doida, era a louca gorda e baixinha.Que bunda imensa. Como sofria, meu Deus. Bastava olhar no rosto dela. Não devia fazer amor há mais de trinta anos. Será que se masturbaria? Será que era esse o problema dela? Uma velha masturbadora? Não! Tirou um terço da bolsa e começou a rezar.Meu Deus, o caso é mais grave do que eu pensava. Estava no quinto cigarro em dez minutos. Tensa. Coitada.O que deve ser dos filhos dela?Acho que os filhos não comem a macarronada dela há dezenas e dezenas de domingos.Tinha cara também de quem mentia para o analista. Minha mãe rezaria uma Salve-Rainha por ela, se a conhecesse.
Acabou o meu tempo.Tenho que ir conversar com o meu psicanalista.Conto para ele a minha "viagem" na sala de espera. Ele ri, ri muito, o meu psicanalista:
"- O Ditinho é o nosso office-boy.O de terno preto é representante de um laboratório multinacional de remédios lá no Ipiranga, e passa aqui uma vez por mês com as novidades.E a gordinha é a Dona Dirce, a minha mãe. E você não vai ter alta tão cedo..."

Texto: Mário Alberto Campos de Morais Prata, mineiro de Uberaba, é jornalista, autor de diversos livros de sucesso, entre outros "Diário de um Magro". Foi cronista do Caderno 2 do Estadão, e das revista semanais Isto É e Época. Ganhou ainda 2 prêmios como roteirista de cinema no Festival de Gramado.
Imagem: Tela de Salvador Dali, "O Enigma sem Fim", de 1928.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

De que não preciso para ser feliz

"Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos em paz em seus mantos cor de açafrão.
Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: "Qual dos dois modelos produz felicidade?"
Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: "Não foi à aula?" Ela respondeu: "Não, tenho aula à tarde". Comemorei: "Que bom, então de manhã você pode brincar dormir até mais tarde". "Não", retrucou ela, "tenho tanta coisa de manhã..." "Que tanta coisa?", perguntei. "Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina", e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: "Que pena, a Daniela não disse: "Tenho aula de meditação!"
Estamos construindo super-homens e supermulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados.
Por isso as empresas consideram agora que, mais importante que o QI, é a IE, a Inteligência Emocional. Não adianta ser um superexecutivo se não se consegue se relacionar com as pessoas. Ora, como seria importante o currículo escolar incluír aulas de meditação!
Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito.
Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos:
"Como estava o defunto?". "Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!"
Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?
Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual.
Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega AIDS, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse.
Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há compromisso com o real!
É muito grave esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais.
Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também eticamente virtuais...
A cultura começa onde a natureza termina.
Cultura é o refinamento do espírito.
Televisão, no Brasil - com raras e honrosas exceções -, é um problema: a cada semana que passa, temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos.
A palavra hoje é 'entretenimento'; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela.
Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: "Se tomar este refrigerante, vestir este tênis, ­ usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!"
O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.
Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes. Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma sugestão. Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro. Porque, para fora, ele não tem aonde ir! O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor.
Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.
Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno.
Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar saber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de que ela tem história.
Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center.
É curioso: a maioria dos shoppings centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingos. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas...
Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno...
Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald's...
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: "Estou apenas fazendo um passeio socrático." Diante de seus olhares espantados, explico: "Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz."


Frei Beto, texto extraído do livro de "O desafio ético", editora Garamond

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

A Escuridão de Jorge Luis Borges


Genebra, 1985.

De manhã Borges acordou com os olhos acinzentados, dormidos e úmidos. Passou ligeiramente uma das mãos pela cabeça e saiu arrastando os chinelos pela casa. Caminhou até a varanda para ver o vulto do dia. Tudo estava calmo. O dia parecia acontecer devagar. Sentiu na pele os vestígios da claridade, o solzinho muito miúdo amarelando o seu olfato. Sentia tudo muito de perto, mesmo sem enxergar nada. Já não possuía mais nenhuma visão dentro dos olhos. Estava cego.
Para Borges a cegueira era apenas um estilo de vida como qualquer outro. Muitas vezes, preferira as sombras à luz. Os poetas tinham qualquer coisa de sombrio dentro de si. Nem por isso eram apenas tristes ou infelizes. Eram, pois, homens capazes de enxergar dentro da escuridão. Para ele a cegueira não significava a morte. Tudo não estava ainda acabado. As coisas continuavam no seu percurso normal. Por isso vivia com intensidade cada dia, mais tristes ou menos tristes, felizes ou não, ele ainda possuía olhos e desejo pela vida.
No seu mundo de sombras, Borges tateava a infinita escuridão sem desespero. Sabia que estava ali dentro e dali não sairia mais, porém não se sufocava por causa da sua condição de cego. Ser cego não é ser triste. E assim ele continuava elaborando na mente seus textos para ditá-los a Kodoma, sua secretária que mais tarde se tornaria sua esposa. A única coisa que o incomodava um pouco naquele seu negro mundo era que não poderia mais ver as cores. Ah, como sentia prazer vendo o mundo das cores! Lamentava por não poder ver mais o vermelho, cor que sempre o seduzira a pensar num poema ou em qualquer coisa a mais. As últimas cores que vira foram o verde, o amarelo e o azul. Depois mais nenhuma cor. Nem o preto. Mas nem por isso ele desistiu. Apenas sentia que o seu corpo estava no escuro, mas sua alma não. Havia muita luz ao redor do mundo dele. Mesmo não enxergando podia imaginar tudo porque sabia como eram as coisas. Afinal já vivera no mundo das luzes do outro lado de lá. Certamente sentia saudades de ver muitas coisas. Quando comia uma maçã, por exemplo, sentia desejo de vê-la. Aquela fruta de casca sedutoramente vermelha em suas mãos causava-lhe fome, vontade de ver. Saudades daquilo que já se apagara dentro dos olhos.
Em muitas manhãs como aquelas Borges sentia a luz entrando-lhe nos olhos e espalhando-se por todo o seu corpo, aquecendo-lhe a pele e os cabelos. Lá fora sentia que as aves piavam eufóricas com os mistérios dos homens. As aves sobreviveram ao inverno rigoroso de Genebra e agora tagarelavam bem perto dele, na La Grand Rue, 28. Mesmo sentido-se em casa, pois adorava estar naquele país, tinha saudades de Buenos Aires. Andar naquelas avenidas da capital argentina na primavera era como escrever um poema no escuro. Doía de tão intenso que era. Sabia que Buenos Aires estaria lá, sempre esperando por ele de braços e abraços abertos. Por isso não se precipitaria em voltar naquele momento de saudades. Pois ainda precisava ver mais um pouco as belezas suíças daquele mundo.
Um cego não vive num mundo de total escuridão. Ele enxerga. De olhos fechados Borges lia o seu imaginário. Em voz alta dizia seus poemas a Kodoma e ela cuidadosamente os escrevia como se estivesse bordando uma toalha de mesa. Borges apertava uma mão contra a outra ao elaborar em voz alta seus poemas na mais profunda magia do silencioso mundo das sombras. Era nele que o escritor vivia agora buscando não se afligir pela ausência das coisas enquanto matéria. Tateava o escuro para não se perder das suas sensações mais preciosas. Porque tinha a consciência de que todo escritor precisava de sentir o que quer que fosse para escrever e, através das sensações, rastrear as palavras uma a uma para compor o seu texto. Sempre dizia que se pudesse enxergar novamente iria ler todos os livros que ainda não teve a oportunidade de ler. Mas agora com oitenta e tantos anos vivia na sua escuridão sem poder ler os próprios livros, entretanto guardava-os na memória e sempre que preciso os revisitava nas sombras de suas lembranças.
Ainda de pé na varanda, Borges sentia tudo muito de perto. Mesmo que fosse um ser solitário, ainda assim, sempre se sentira rodeado pelas coisas. A solidão de Borges era plena; aquele tipo de solidão que os artistas sentem porque vivem intensamente o processo de criação. Ouvindo os pios das aves entendia que haveria sempre um segredo a mais para o homem decifrar. Aquela melodia não era triste, porém era solitária. Isso ele podia ver. Alguns instantes a mais do lado de fora e então se apressou para regressar à sala porque sentia-se também como uma ave que necessitava, desesperadamente, soprar uma melodia de palavras aos ouvidos de Kodoma. Às vezes ele era assim: um homem de impulsos inesperados. Mesmo na escuridão ainda se sentia vivo. Queria, mesmo sendo um cego, viver. As sombras não lhe amputariam a ânsia pela vida. Ao contrário, dizia sempre: "devo certas dádivas às sombras”.
Agora sentado numa poltrona forrada de ocre, pensava num poema. Esfregando as mãos uma na outra, parou os olhos no escuro, pensou e depois disse a Kodoma o primeiro verso de seu poema: “Eu sou uma ave atravessando a infinita escuridão do homem”. Ela o olhou despida de qualquer sombra e delicadamente escreveu numa página branca aquelas palavras de Borges.

Texto de Mírian Freitas, que nasceu em 1968, na cidade de Caratinga (MG). Escreve poesias, contos e ensaios. Tem artigos, poemas e contos publicados em jornais literários. Está lançando, em 2006, seu livro "Intimidade Vasculhada" nos Estados Unidos, onde reside e leciona há mais de cinco anos. http://www.releituras.com/ne_mfreitas_escuridao.asp

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Não é Amor


Atrevo-me a alguns comentários leigos sobre os casos, em grande evidência, de seqüestro e assassinato de mulheres muito jovens por seus companheiros, namorados ou maridos também muito jovens. Limito-me a manifestar um terrível mal-estar, que é, ao mesmo tempo, tentativa de entender.
O caso da adolescente Eloá, de Santo André, parece ter provocado um surto. De Goiás, da Bahia, a notícia traz nomes e situações diferentes, mas, no fundo, é a mesma: após décadas de conquistas femininas e da queda de tantos tabus, a relação homem-mulher ainda é presa de uma cultura doente de posse e anulação do outro.
Em plena vigência da maior liberdade sexual já vivida na sociedade ocidental, grande parte dos homens comporta-se com perverso desejo de fusão com quem dizem amar, a ponto de colocar sua integridade em risco. A mulher que eles ameaçam em nossa frente, no horário nobre, não é nossa filha.Mas, de certa forma, é. Não é nossa irmã. Mas, de certa forma, é. Não somos nós. Mas estamos todos reféns da perplexidade e da carência de sentido de tudo isso.
O que faz alguém imaginar ser dono do outro ou senhor do sofrimento alheio, inclusive da família, dos amigos, da comunidade e, com o auxílio da mídia, do país inteiro?
Esses episódios chamam a atenção para um fosso que torna incompletas as conquistas femininas, se as tomarmos sobretudo em seus aspectos relacionados a questões legais e materiais. No plano emocional, o pensar masculino parece ter sido insuficientemente afetado pelas mudanças nas leis, nos costumes, na realidade social. Ainda está perdido, talvez mais do que o universo feminino, na armadilha da possessão, confundindo-a com amor.
Antes era brandida a honra para justificar a violência. Hoje, entregues à razão narcísica contra quem não aceitou a fusão absoluta, decretam: ou assimilo o outro, ou ele não pode mais existir.
E, no entanto, há quantos anos as leis e as convicções repelem esse domínio? Talvez tenha chegado o momento de o movimento feminista recrudescer em outro patamar, para unir homens e mulheres que reconhecem na cultura da posse uma redução de seu potencial humano e, na desigualdade de direitos, grave ofensa ao direito de ser feliz num mundo mais ameno.
Não se pode imaginar que um homem que oprime ou tortura mulheres, por quaisquer meios, ou lhes tira até mesmo a vida tenha alguma satisfação genuína ou auto-estima. O grande desafio é que, enquanto essa legião de órfãos da felicidade não encontrar o rumo de casa, ou seja, da parte sensível e acolhedora de sua condição humana, estará faltando algo essencial aos direitos das mulheres.

Texto de Marina Silva, ex Ministra do Meio Ambiente.