quarta-feira, 12 de novembro de 2008

A Escuridão de Jorge Luis Borges


Genebra, 1985.

De manhã Borges acordou com os olhos acinzentados, dormidos e úmidos. Passou ligeiramente uma das mãos pela cabeça e saiu arrastando os chinelos pela casa. Caminhou até a varanda para ver o vulto do dia. Tudo estava calmo. O dia parecia acontecer devagar. Sentiu na pele os vestígios da claridade, o solzinho muito miúdo amarelando o seu olfato. Sentia tudo muito de perto, mesmo sem enxergar nada. Já não possuía mais nenhuma visão dentro dos olhos. Estava cego.
Para Borges a cegueira era apenas um estilo de vida como qualquer outro. Muitas vezes, preferira as sombras à luz. Os poetas tinham qualquer coisa de sombrio dentro de si. Nem por isso eram apenas tristes ou infelizes. Eram, pois, homens capazes de enxergar dentro da escuridão. Para ele a cegueira não significava a morte. Tudo não estava ainda acabado. As coisas continuavam no seu percurso normal. Por isso vivia com intensidade cada dia, mais tristes ou menos tristes, felizes ou não, ele ainda possuía olhos e desejo pela vida.
No seu mundo de sombras, Borges tateava a infinita escuridão sem desespero. Sabia que estava ali dentro e dali não sairia mais, porém não se sufocava por causa da sua condição de cego. Ser cego não é ser triste. E assim ele continuava elaborando na mente seus textos para ditá-los a Kodoma, sua secretária que mais tarde se tornaria sua esposa. A única coisa que o incomodava um pouco naquele seu negro mundo era que não poderia mais ver as cores. Ah, como sentia prazer vendo o mundo das cores! Lamentava por não poder ver mais o vermelho, cor que sempre o seduzira a pensar num poema ou em qualquer coisa a mais. As últimas cores que vira foram o verde, o amarelo e o azul. Depois mais nenhuma cor. Nem o preto. Mas nem por isso ele desistiu. Apenas sentia que o seu corpo estava no escuro, mas sua alma não. Havia muita luz ao redor do mundo dele. Mesmo não enxergando podia imaginar tudo porque sabia como eram as coisas. Afinal já vivera no mundo das luzes do outro lado de lá. Certamente sentia saudades de ver muitas coisas. Quando comia uma maçã, por exemplo, sentia desejo de vê-la. Aquela fruta de casca sedutoramente vermelha em suas mãos causava-lhe fome, vontade de ver. Saudades daquilo que já se apagara dentro dos olhos.
Em muitas manhãs como aquelas Borges sentia a luz entrando-lhe nos olhos e espalhando-se por todo o seu corpo, aquecendo-lhe a pele e os cabelos. Lá fora sentia que as aves piavam eufóricas com os mistérios dos homens. As aves sobreviveram ao inverno rigoroso de Genebra e agora tagarelavam bem perto dele, na La Grand Rue, 28. Mesmo sentido-se em casa, pois adorava estar naquele país, tinha saudades de Buenos Aires. Andar naquelas avenidas da capital argentina na primavera era como escrever um poema no escuro. Doía de tão intenso que era. Sabia que Buenos Aires estaria lá, sempre esperando por ele de braços e abraços abertos. Por isso não se precipitaria em voltar naquele momento de saudades. Pois ainda precisava ver mais um pouco as belezas suíças daquele mundo.
Um cego não vive num mundo de total escuridão. Ele enxerga. De olhos fechados Borges lia o seu imaginário. Em voz alta dizia seus poemas a Kodoma e ela cuidadosamente os escrevia como se estivesse bordando uma toalha de mesa. Borges apertava uma mão contra a outra ao elaborar em voz alta seus poemas na mais profunda magia do silencioso mundo das sombras. Era nele que o escritor vivia agora buscando não se afligir pela ausência das coisas enquanto matéria. Tateava o escuro para não se perder das suas sensações mais preciosas. Porque tinha a consciência de que todo escritor precisava de sentir o que quer que fosse para escrever e, através das sensações, rastrear as palavras uma a uma para compor o seu texto. Sempre dizia que se pudesse enxergar novamente iria ler todos os livros que ainda não teve a oportunidade de ler. Mas agora com oitenta e tantos anos vivia na sua escuridão sem poder ler os próprios livros, entretanto guardava-os na memória e sempre que preciso os revisitava nas sombras de suas lembranças.
Ainda de pé na varanda, Borges sentia tudo muito de perto. Mesmo que fosse um ser solitário, ainda assim, sempre se sentira rodeado pelas coisas. A solidão de Borges era plena; aquele tipo de solidão que os artistas sentem porque vivem intensamente o processo de criação. Ouvindo os pios das aves entendia que haveria sempre um segredo a mais para o homem decifrar. Aquela melodia não era triste, porém era solitária. Isso ele podia ver. Alguns instantes a mais do lado de fora e então se apressou para regressar à sala porque sentia-se também como uma ave que necessitava, desesperadamente, soprar uma melodia de palavras aos ouvidos de Kodoma. Às vezes ele era assim: um homem de impulsos inesperados. Mesmo na escuridão ainda se sentia vivo. Queria, mesmo sendo um cego, viver. As sombras não lhe amputariam a ânsia pela vida. Ao contrário, dizia sempre: "devo certas dádivas às sombras”.
Agora sentado numa poltrona forrada de ocre, pensava num poema. Esfregando as mãos uma na outra, parou os olhos no escuro, pensou e depois disse a Kodoma o primeiro verso de seu poema: “Eu sou uma ave atravessando a infinita escuridão do homem”. Ela o olhou despida de qualquer sombra e delicadamente escreveu numa página branca aquelas palavras de Borges.

Texto de Mírian Freitas, que nasceu em 1968, na cidade de Caratinga (MG). Escreve poesias, contos e ensaios. Tem artigos, poemas e contos publicados em jornais literários. Está lançando, em 2006, seu livro "Intimidade Vasculhada" nos Estados Unidos, onde reside e leciona há mais de cinco anos. http://www.releituras.com/ne_mfreitas_escuridao.asp

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